Espreita-nos a Sombra dos "Homens de Fé": crença e intolerância

Definindo a fé

A fé, basicamente, é a capacidade humana de crer. Ela se relaciona com outras funções psicológicas, como a memória de longo prazo e a afetividade. É a partir do aprendizado social que entendemos que podemos (ou não) crer em algo e no quê. Afinal, como seres sociais, também cria-se um vinculo afetivo que facilita desenvolver confiança no outro. Quando se crê, a gente se compremete.
O homem necessita crer para poder viver, do ponto de vista do indivíduo e da socialização. Ela pode se manifestar inconscientemente. No cotidiano, a criança crê nos país; nós cremos em nossos amigos e amores; cremos em nós mesmos; na aceitação do outro; que chegaremos seguros em algum lugar; cremos que realizaremos um sonho. De modo que podemos dizer que não viveríamos ou não teríamos alcançado tanto, se não pudéssemos experimentar a fé. Ela é a motivação de cada gesto e passo.

Os tipos de fé

Define-se, contudo, em dois tipos: fé humana e fé religiosa. Essa deriva daquela, que é secular, desenvolvida desde o instante em que o cérebro humano nos permitiu exercê-la acompanhada pela racionalidade e com consciência. A fe religiosa, por sua vez, subjaz uma crença religiosa e se refere à existência de uma deidade, portanto, criada, idealizada, explicada, mantida e reforçada através de dogmas e doutrinas (a crença descrita no objeto religioso). Dessa forma, fé não é o mesmo que crença. E ambas podem ou não possuir uma natureza religiosa.
Isso nos permite concluir que:

O ateu é um homem de fé
O religioso tem fé religiosa
É possível crer na existência de Deus e não ser religioso

Existem mais de 10 mil religiões no mundo, pois cada um interpreta este mundo (e Deus) conforme as suas experiências pessoais, como entende a si mesmo e o outro no que compreende a sua subjetividade e a cultura em que está inserido.
Não cabe indagar sobre a existência e inexistência de Deus ou se um tipo de fé é mais importante. Mas tecer um pouco acerca do fanatismo religioso de quem crê, como eu costumo dizer, "no seu" Deus e combate quem não crê no Deus dele ou em deidade alguma.


O "homem de fé"

Atenhamo-nos àquele típico homem "de fé", virtuoso por não rejeitar o criador, assumido puritano que rejeita o "mundano", leitor ferrenho do seu livro de fé (podendo ser a Bíblia, o Talmud ou a Torá), severo, incapaz de perceber naquele que não pertence ao seu círculo religioso, um cidadão de dreito. Essa é uma consequência do fundamentalismo religioso. Do poder da fé em si e da crença religiosa. O religioso se vê dono do mundo, o seu bendito e irrecusável ofício é disseminar tais fundamentos. No Brasil isso é muito comum, em razão do contexto histórico.
A ignorância predispõe à intolerância. Mas também o saber, principalmente quando a pessoa só possui ou valoriza o conhecimento religioso. O fato é que todo religioso foi doutrinado e dogmátizado, com todos os implicantes do processo no qual convém aprofundar numa outra oportunidade.

Psicanaliticamente

Pelo discurso de distinção e superioridade, o ego do fanático e intolerante religioso busca histericamente esconder a miséria e insignificância do Eu. Porém, o dogma e a doutrina o alimenta com mais certeza de que a sua alma (mente) é pura -- sim, como se fosse possível dissociá-la do corpo.
Isso, em parte, e até certo ponto, é natural. Acontece com todo mundo quase o tempo todo. É um fenômeno psicológico, inconsciente e instintinvo. Fazemos isso com todos aqueles que em qualquer aspecto difiram de nós. Provém da individuação que faz parte da vivência da própria individualidade em meio ao coletivo. Diferenciamo-nos e precisamos acreditar que somos especiais pela nossa saúde psicoemocional.
Mas esse mecanismo inconsciente adquire um novo significado quando o indivíduo está deformado por crenças preconceituosas e discriminatórias. Torna-se uma arma contra o diferente, que é visto e posto como inferior e um risco natural para a sua crença e para si mesmo -- o fanático quer moldar o outro e o mundo e entende que o diferente pretende o mesmo, às vezes, só pela sua existência, pelo seu modo de ser. O religioso fundamentalista se coloca avesso à convivência. Gozando de algum poder, ele marginaliza e excluí o não religioso.
Buscando transcender ou pelo menos evitar ser condenado ao fogo do inferno por ser humano, o religioso rejeita partes não necessariamente malévolas da sua natureza humana e animal, tidas como negativas, ruins e pecaminosas, e abomina quem as aceita e as experimenta. Para o fundamentalista, o homem livre é abominável não pela liberdade em si, que ele não se permite gozar, apenas, mas primordialmente pelo que ele se constitui humano. E evidentemente, execra-o ainda mais por não juntar-se a ele numa espécie de inquisição contra o humano, sinônimo de impureza latente..O fundamentalista religioso, como resultado da prisão que transformaram a sua cognição, é um detento da moral religiosa (crença), um frustrado e paranóico segurança dele mesmo e um contumaz caçadorc de quem é livre e feliz. E como o instinto é inevitável, ele  vivem em confpito. Se houver predisposição, desenvole neurose, além de já ser um falso moralista. Quem o segue, é duas vezes cego pois também não tem discernimento de si.


A religião no Estado de Direito

A religião nunca esteve isenta dessa complexidade: é produto do homem, tão antiga quanto e como tal, representa, embora não meramente, sua visão de homem, de mundo, do próprio Deus -- crenças. Algo, definitivamente, particular, subjetivo e relativo.
Não por acaso, a religião concerne ao campo do direito. Viva o Estado laico, por garantir que possamos exercer o direito de viver -- crendo ou não -- segundo as nossas subjetividades.
Porém, mesmo distantes dos tempos medievais, e com os direitos salvaguardados por uma Constituíção (que acreditávamos ser inviolável), somos lembrados do risco do obscurantismo. Afinal nem os livros e as leis mais benevolentes são inquebrantáveis e estão protegidas dos atos dos homens. A ética não está. E isso deve ser objeto de estudo de modo que criemos mecanismos que as assegurem.

A crença discriminatória

A crença possui uma carga de afeto, é acompanhada de emoções e sentimentos. Uma vez que adquirimos hábitos e ideias no seio familiar, comunidade e escola, torna-se muito difícil para o sujeito sequer ser flexível em relação ao que acredita ser o certo. O que dirá ser convencido de abandonar essas ideias, mesmo quando elas não são corretas.
Pela lei o racismo e a apologia ao nazismo são crimes graves e inafiançaveis. Se fosse diferente, a humanidade correria o risco de ver essas ideologias tão nefastas para os judeus, negros, latinos, homossexuais e deficientes físicos sendo compartilhadas livremente e já sabemos que as ideias predispõem condutas, estimulam atitudes, pressupõem as e se transformam em regras, leis e ordem. O campo das ideias se concretiza na realidade.
Ocorre que há crenças religiosas e ideológicas que se constituem por essa ótica discriminatória. O que é ainda pior, devido ao fato da crenca religiosa discriminatória ser protegida sob o direito de opção religiosa, homens que falam por seus deuses (seus egos, talvez?) para oprimirem o outro colocam em risco toda a sociedade comprometida com o progresso justo e igualitário, conforme apregoam os princípios e ideais humanistas e ilumimistas. As palavras deles são ouvidas como leis. Não importa se essas palavras são, no que pretendem dizer ou propor, lógicas, o que dirá eticamente questionáveis. Assim, crianças são ensinadas por seus pais que, por sua vez, foram ensinados por sacerdotes ou pastores que determinado modo de ser é abominável aos olhos de Deus e reproduzirão essa fala no cotidiano fora do contexto familiar e da Igreja.

Quando a crença ganha voz e o ato a incorpora

Uma fala discriminatória certamente atingirá e afetará alguém. Estamos presenciando o senso comum se tornando lei não oficialmente. Mas afinal, se religião não é senso comum validado pela tradição, também não é ciência ou filosofia. Então está bem próxima disso. Não por acaso, vemos com naturalidade homens de fé na política discriminando negros, índios, LGBT, oprimindo mulheres, etc. Quando eles o fazem, munidos do objeto de fé da sua religião, quem assiste entende como uma autoridade. Porque a religião é tratada como algo inquestionável, mesmo sendo porta-voz de discursos de ódio.
Não estamos falando de preconceitos. Não mais. Informação não falta para descontruí-los. Realmente, estamos lidando com pessoas com crenças errôneas formadas e apresentadas quase como teorias. Mas crenças das quais elas não abrirão mão por paixão pela ideia que os seus círculos sociais lhes transmitiram em momentos inesquecíveis. Jamais irão questionar as crenças,  pois envolveria questionar os pais, os pastores, etc. 
Vale lembrar que o ódio dos homossexuais, negros e latinos ocupa lugar de fato e possuí status cientifico no nazismo e na eugenia. O olhar de desprezo pelo que ele supõe ser inferior orienta o nazista. As minorias são vistas como pequenas, execráveis, não importa o que a ciência tenha a dizer a respeito. Nisto reside o perigo: são indissociáveis, religião e ideologia. E as ideologias discriminatórias "não religiosas" se protegem na religião. Não à toa vemos cartazes de skinheads nazistas pregando ódio seguido de uma mensagem sobre Deus.

O perigo do fundamentalismo religioso

Nas principais religiôes fundamentalistas, uma análise científica dos seus textos e discursos, permite identificar elementos ideológicos nefastos como a xenofobia, racismo, homofobia, misoginia, machismo e relativização e até incentivo a coisas igualmente antiéticas como o incesto, pedofilia, racialismo, escravismo e homicídio. Há uma clara perseguição ao outro, entendido como um inimigo em sua diferença, pela sua natuteza humana e pelo seu jeito de ser. A caça às bruxas é o ofício dado por Deus ao homem de fé que não o recusará. Quando se demoniza a torto e à direita, todos nós corremos o risco de sermos queimados na fogueira.
Una a isso o fato de que para praticamente todo religioso, a religião do outro, senão for inferior simplesmente, está necessariamente errada. Mas esses pré-julgamentos transcendem esse contexto da religião, recaem sobre indivíduos, sobre o diferente. Isso foi verdadeiro na Idade Média, mas o identificamos em sociedades tribais. A discriminação lembra que nós possuímos esse instinto "tribal". E alguns ainda pensam e agem assim como se fosse natural e devesse ser aceito. Não é mais necessário trucidar o outro, basta fazerem campanhas político-ideológico-religiosas contra e negarem direitos a todo o seu grupo. Podemos afirmar que ainda existem holocaustos em nossa socidade eugênica., com base nas crenças discriminatórias. Basta vermos quem são os grupos marginalizadas e excluídos do sistema os quais atingem toda sorte de mazela.
Por isso é tão importante falar de gênero, diversidade étnico-cultural e teligiosa e sexualidade humana nas escolas. O mundo é feito de diversidade, o respeito ao outro faz parte da socialização que é dever também e principalmente da escola. Quando em uma sociedade é grande a violência contra as minorias, a família não tem dado conta de socializar seus membros. Mas o Estado tem por obrigação intervir pelas minorias.

     Gravura representando uma acusada de bruxaria sendo torturada por afogamento e por estiramento dos membros pela Santa Inquisição. Ainda hoje os demonizados são estigmatizados e castigados com a abolição simbólica do eu.

O caminho para o inferno

Boa intenção a gente encontra por toda parte. Se for para convencer o outro sobre algo que pertence a si e o convém, cada um se entende bem intencionado. Até Hitler teve boas intenções. Pode se dizer dono da verdade divina, também. Motivado por crenças religiosas e ideológicas atreladas a sentimentos, o sujeito toma atitudes políticas na intenção de modificar os outros sujeitos e o mundo. Todo religioso inclina-se à ideia de disseminar a sua visão de mundo e o seu modo de ser que é defendido como correto.
Especialmente quando segue uma religião fundamentalista, e os seus fundamentos não devem nada à lógica e a ética -- ao que, racionalistas que somos, entendemos deter a razoabilidade necessária para a convivência harmoniosa em sociedade --, isso é muito perigoso e assustador. Pode parecer alarmante, mas é apenas sensatez. Como diz a própria Bíblia Sagrada, devemos nos vigiar sempre, do contrário, o inimigo nos engole pelo descanso. Mas essa citação também pode ser usada por aqueles que vêem inimigos em qualquer um --  aqui, são eles os verdadeiros inimigos.

Esperança na eterna contradição que sempre e oporá ao pseudo-normal

Devemos nos lembrar que os puritanos e os moralistas religiosos não são melhores do que ninguém. Pelo contrário, e justamente por estarem tão equivocados e perdidos em suas crenças, alimentados com sentimentos pelos que lhe incutiram tais crenças e fortalecidos com convicções, uma vez compromeridos com as ideias dos seus pais, e vendo os seus pais nelas, precisam ser contidos.
Pois,  o destino certo é esses homens cujos egos buscam esconder suas próprias mediocridades dos seus eus,  através do discurso de distinção, rebaixando os seus iguais, deixando implicito que foram oprimidos pelos moralismos que desde cedo enfiaram em suas cabeças e os tornaram individuos anulados e amargos, tenderem a impor suas certezas aos que se permitem ser livres ou perseguí-los até que logrem êxito no moldar este mundo.
É nisto que eu creio, infelizmente, diante da historia, tendências humanas e circunstâncias atuais. No entanto, de tudo mais, creio sobremaneira na educação com base na ciência e na benevolência de virtudes humanas que não dependem de algum "ismo", "ista" ou "ão", mas de ser humano, na potencialidade máxima do ser que se construiu até aqui crendo muito -- sempre! -- mas não por outra razão além da coexistência: a racionalidade,  empatia, respeito e moderação.
Finalmente, não devemos retroceder, sob nenhuma hipótese, tampouco pelo argumento do direito de absolutizar o outro com o que é particular. Abusar do direito ao livre pensar para disseminar o que é antiético e compactuar com a maldade, jamais! Oprimir o outro nunca foi um direito. E algumas pessoas, principalmente as religiosas precisam aprender sobre deveres. Rédeas imprescindíveis. Principalmente em tempos em que as sombras do obscurantismo se levantam sobre a nossa sociedade já tão pouco esclarecida. Ocorre que aquele que foi cognitivamente explorado no sofrível processo de doutrinação religiosa muito dificilmente aceita sequer debater sobre o direito de ser do outro. Ele não vê da forma que nós vemos, desde cedo, a sua cognição foi deformada, os caminhos neurais se tornaram ruas sem saída, tornando quase impossível enconttar outras sinteses de pensamento. No fundo, a sua intenção é extingir o seu modo de ser é a sua natureza humana da face da Terra.
Entretanto, a frase abaixo, atribuída a Freud, cai como uma luva para os sábios, quando peitados pelos dogmáticos egocêntricos, convictos da benevolência de suas ideias, mas tão nefastas para a razão:

        
"N ão desejo suscitar convicções, o que desejo é estimular o pensamento, derrubar preconceitos."

Para bom entendedor, meia palavra deveria bastar.

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